ENTRE A ANGÚSTIA

E A       ESPERANÇA

Uma Continuação do Episódio My Struggle II

 

Parte 2   -   Final

 

 

 

 

 

 

 

Criação - Wanilda Vale

 

 

 

 

 

O ruído da diversão lá fora o faz apenas baixar o olhar em direção do chão,  no ambiente tranquilo onde se encontra.

Levanta depois os olhos, fitando o vazio. Pensamentos variados tomam conta de sua mente. Leva a mão à boca, mordendo as unhas, retirando-lhes a pele ao redor.

De repente:

"Ai!"  — geme em seu interior.

Mesmo sentindo a pouca dor pela unha que teve sua pele arrancada, sua mente retorna àquilo que lhe tem trazido tanta dor; essa bem maior e difícil de curar  com um simples medicamento para sarar. Essa dor se propaga em seu coração, sua mente, seu alma!

"Por que tem que ser assim? Será que é assim que Deus, o Criador de todas as coisas deseja pra mim?" — abaixa a cabeça, olhos fixos nas mãos apoiadas sobre os joelhos — "Será que esse meu pensamento está correto ou as minhas ideias é que tomaram conta e invadiram com seu poder maligno meu ser? Meus pais me criaram com muito amor, educação, obediência, respeito... sim, eu os amei muito! Só não sabia que os perderia tão cedo...!" — seu olhar se dirige para além da janela aberta, mostrando o céu nublado, mas dando a parecer que nenhuma chuva viria molhar o chão coberto com a verdejante grama daquele pátio.

"Mas.. e esses que conheci agora? Aquela bela mulher que me carregou no seu ventre por nove meses... sofreu, penou, foi uma heroína, não deixando que me matassem ou sei lá o quê! E aquele homem que diz ser meu pai, aquele que me ajudou a gerar no ventre de minha mãe... e ele também me olhou com tanto carinho...! Será que sou eu, exatamente que trago dentro de mim a insensibilidade, a frieza de sentimentos?"

— Por que você não vai se distrair um pouco lá fora? — alguém fala.

O jovem olha para quem lhe dirige a palavra. Balança negativamente a cabeça.

— Está sentindo alguma coisa?

— Não... estou só descansando.

— E está cansado...? Por que?

— Ah... — balança a cabeça — ... é que eu vivo... — aperta os lábios — ... vivo pensando aqui, senhora Claire.

— Sabe que entendo com que você fica preocupado?

— A senhora sabe...?

— Sim; você sabe muito bem que seu lugar não é aqui.

Ele abaixa a cabeça, apertando os lábios.

— Escuta William, compreendo que você vive momentos de desespero que, com muito esforço, consegue aguentar pela força que existe no seu coração.

— É... a senhora entende bem o que estou passando.

— Claro, meu jovem, eu entendo seu sofrimento. Na realidade você tem desejo de estar ao lado de seus pais... de passar  seu dia a dia usufruindo de seu amor, que o desgaste do tempo fez deixar para trás.

***

Mulder acumula com paciência a papelada espalhada sobre a mesa. Olha a pilha formada sobre um dos cantos. Coloca o cotovelo sobre a mesa e a mão apoiando a testa.

Seu semblante preocupado tem os olhos fechados, demonstrando que pesados pensamentos estão tomando totalmente sua mente. Num repente, com a mão espalha com violência a pilha de papéis, que saem  voando em direção do chão. Em seguida, com o punho fechado, dá um murro sobre a mesa.

Levanta rapidamente; vai até ao porta-casacos e dali arranca rápido o paletó.

***

Dana, jogada na cama, rosto apertado sobre o travesseiro, deixa que as lágrimas  se lhe deslizem pela face pálida. Sabe que no Hospital em que trabalha está fazendo falta pela necessidade de atendimento aos inúmeros pacientes internados,  precisando de cura pela doença que se propaga mais a cada dia.

No entanto, para aumentar seu sofrimento pela preocupação no trabalho e sua importante missão no FBI, a dor que lhe toma a cabeça, tornando seu estado cada minuto pior, derruba-a totalmente. Sente-se incapaz de dominar esse infortúnio. Nem forças tem para levantar-se da cama; sente-se completamente mal.

***

Mulder estaciona o carro. Debruça-se sobre o volante. Durante alguns segundos permanece nessa posição. O cérebro parece voltear ininterruptamente, em busca de algo que lhe faça definir qual atitude deve ser tomada naquele momento.

"Tenho que ir até lá; tenho que ir; por que não tentar? Talvez com minha presença..."  — seu pensamento se encerra aí.

Rapidamente retira as chaves da ignição. Sai do carro, trancando as portas. Entra na recepção do prédio. Fala com a pessoa responsável no ambiente. É levado a uma sala especial.

— Pode aguardar aqui, senhor, por favor.

— Obrigado.

Com as mãos entre as pernas, ele abaixa a cabeça e fecha os olhos. Logo não está sozinho no local.

— Oi, tudo bem? —  ele cumprimenta o recém-chegado.

— Sim, tudo.

— William, vim aqui para ver como está.

— Estou bem. — fala, sem sorrir.

— É que... eu quero lhe fazer uma proposta.

O jovem franze o cenho, olhando Mulder, sem entender.

— Quero levá-lo para passar uns dias na minha casa e...

— ... ah não, obrigado!

— Espera, William; me deixa explicar. Não pretendemos eu e sua mãe induzi-lo a permanecer em nossa companhia; não é isso! Apenas o convido para que você possa mudar um pouco de ambiente, relembrar como é estar com uma família e não apenas numa Instituição. É isso.

William morde os lábios. Sente que não sabe o que retrucar às palavras de Mulder.

— Boa tarde, senhor!

Mulder vê a pessoa que está entrando na sala neste momento.

— Boa tarde! — cumprimenta-a levantando-se.

— É bom para nosso William receber uma visita — ela fala sorrindo — meu nome é Claire Thompson.

— Eu sou Fox Mulder, Agente do FBI.

— Muito prazer. É amigo dos falecidos pais de William?

— Não, senhora Thompson... eu...

— ... ele é meu pai. — explica o jovem, concluindo a frase do Agente.

A moça pisca duas vezes os olhos, demonstrando que não está assimilando muito rapidamente o que está acontecendo.

— Seu... pai...?

— Senhora, eu sou o pai biológico de William.

Ela levanta as sobrancelhas:

— Ah, senhor! Sua visita é muito especial para William! Esse rapazinho está necessitando demais de um compartilhamento com um lar, o que ele perdeu numa ocasião em que não poderia acontecer...

— ... justamente porque na juventude, essa parte da vida em que de criança o ser humano passa para a adolescência, o aconchego de um lar é de extrema necessidade.

— Oh, meus parabéns por suas sábias palavras, senhor Mulder!

— Sou psicólogo, senhora, embora não exerça esta profissão.

— Mas então somos colegas! Eu sou uma das psicólogas daqui.

Ambos sorriem.

William, diante de uma cena tão explicativa para seu entendimento, sai de seu semblante fechado e também sorri.

— Bem, senhora Thompson, eu vim aqui num propósito que percebi não ser do agrado do meu filho.

A moça, ao ouvir essas palavras, inclina a cabeça, fitando com carinho o Agente diante de si.

— Eu o admiro, senhor Mulder, porque em raríssimas vezes podemos ver atos como o seu.

— Sério...?

— Não estou inventando, senhor Mulder! Aqui convivemos com situações de toda espécie e principalmente as mais terríveis e chocantes.

William dirige o olhar para Claire. Resolve soltar algumas palavras:

— Um dia eu vou até sua casa... — fala, voltando-se para o pai.

Mulder põe a mão sobre o ombro do filho, apertando-o um pouco:

— Sim, filho, tenho certeza de que um dia você nos conhecerá melhor. — ele se levanta.

William faz o mesmo gesto.

Mulder se despede de Claire com um gesto e sai.

***

Dana sai do banho. O espelho na parede a reflete. Ela para por momentos diante dele e se mira. Concentra o olhar refletido no espelho. Os pensamentos que lhe inundam a mente fazem com que as lágrimas desçam por sua triste e sofrida face.

"Reencontrei meu filho... e no entanto ele não me quer...! Isso me faz sofrer; não sei se posso aguentar, apesar de que o amor de Mulder me dá forças para sobreviver. Mas por que isso teve que acontecer na minha vida...?"

E as lágrimas continuam lhe descendo pela face.

— Scully! — ouve chamar.

Ela se volta para olhar:

— Ah, chegou, Mulder? Acho que você demorou, porque havia me dito que aquele caso já estava concluído e você ia sair cedo.

— É verdade, Scully. — retira o paletó; morde os lábios; não tem coragem de dizer onde tinha ido; aproxima-se mais dela — Scully... o que houve...? — segura-a pelos ombros e puxa-a para si — Não! Não fale nada! Bem sei o que está sentindo.

— M... Mulder, por que tem que ser assim?

Ele a aperta mais contra si; beija-a na testa:

— Esperemos, Scully; há sim, um problema psicológico no nosso filho. Pense bem: se você tivesse uma infância desse tipo, com esse sofrimento, se sentindo num abandono terrível por seus pais biológicos, o que teria em sua mente? Sofrimento, insegurança apenas! — ergue o rosto dela, fitando seus olhos lacrimosos.

***

O dia amanhecera nublado.

Após ter estacionado o carro, Dana tem acesso à entrada do Hospital.

"Sei que tenho mais responsabilidades, pois continuo a ser parceira de Mulder, ajuda-lo em novas investigações.  Ai... meu desejo mesmo é seguir num caminho sem direção, sem um fim... não estou aguentando todo esse sofrimento." — os pensamentos não lhe dão sossego.

***

Durante todo o dia sua responsabilidade como médica havia sido executada com todo afinco; agora, já cansada, porém se sentindo realizada por ter prestado seus serviços obrigatórios, segue rumo à saída, caminhando rapidamente.

Enfermeiros passam, levando pacientes em macas.

Uma enfermeira se aproxima de Dana:

— Doutora Scully, acaba de chegar mais um paciente.

— Encaminhe-o imediatamente para o Doutor Johson. Estou saindo agora.

A enfermeira se afasta em seguida.

Dana continua em passos rápidos.

— Doutora Scully! — outro chamado ela ouve.

— Por favor! Estou de saída; não posso atender agora.

— Ok, doutora!

Continuando em seus passos ligeiros, ela passa por uma sala, onde várias pessoas se encontram.

— Doutora! — o jovem a chama e se aproxima.

Ela, estando de costas, pensa:

"São tantos chamados, que me dá uma tremenda irritação." — pensa, antes de se voltar para quem a chama neste momento.

Seu olhar se expande:

— Você...?!

Ele se aproxima. Seu semblante sério, porém parecendo nervoso, ansioso, faz Dana abrir os lábios, surpresa.

— É... doutora... eu posso lhe falar?

— Claro, claro! — aperta as mãos, sentindo-se nervosa — Esteja à vontade!

— É que eu... eu quero lhe pedir desculpas, que não fique zangada com a minha decisão e...

Dana está sem saber o que falar; seu coração bate descompassado, mas resolve interromper:

— ... não! Não se preocupe, William! Há sim, um grande desconforto para seus pais, mas somente você é o dono de sua vida e suas decisões. — seus olhos se enchem de lágrimas.

Agora William abaixa o olhar; sente-se emocionado neste momento.

— William, por favor, eu estou saindo e lhe peço que possamos conversar lá fora.

— Sim... sim! Sem problema.

Saem do Hospital.

— Você está indo para sua casa? — ele pergunta.

— Sim, estou, mas posso conversar como você precisa.

— Obrigado.

— E então...? Pode falar, William.

— A psicóloga da Instituição em que vivo, conversou muito comigo...

— ... sim... e então?

— ... ela me instruiu, aliás me sugeriu conhecê-los melhor, já que... vocês são meus verdadeiros pais.

Dana se sente nervosa, abalada, ansiosa:

— E você concorda que a sugestão dela é correta?

Ele abaixa a cabeça; em seguida dirige o olhar para o amontoada de carros ali estacionados:

— Sim... sim... mãe.

Ao ouvi-lo chamá-la desse modo, Dana sente desejo de abraçá-lo fortemente, mas consegue se conter.

E ele continua:

— Meu pai esteve lá para me ver e...

Ela coloca a mão fechada sobre os lábios, como que tentando não gritar pela surpresa do que está ouvindo.

— ... eu não dei a ele a devida atenção. Estou arrependido.

— Oh, William... meu filho! — estende as mãos, como se fosse abraçá-lo, mas desiste.

— E eu quero... — está indeciso — ... quero lhe pedir que me deixe ficar uns dias em sua casa.

Dana nem sabe o que responder. A intensa ansiedade a havia tomado por completo.

— Por favor... não me importo se não quiser que eu vá com você. — ele fala.

Agora ela consegue deixar saírem as palavras através de sua garganta:

— Claro que eu quero isso, William! Vai ser uma grande alegria para o  meu coração e o do seu pai também! Acredite!

Ele apenas sorri levemente.

— Vamos. Meu carro está logo ali.

Os dois se dirigem para o veículo. Logo entram.

William coloca a mochila que traz no banco traseiro. Olha com simpatia para a mãe:

— Um dia vou aprender a dirigir.

— Com certeza, meu filho.

Dana o vê esboçando um leve sorriso e se sente feliz:

— Logo chegaremos em casa.

— Ele... vai estar lá?

Ela o olha; aperta os lábios, vendo que ele não quer citar o nome adequado, que é pai.

— Sim; acredito que hoje seu pai saiu mais cedo do FBI.

***

Mulder, em casa, pensativo, está diante da TV. A mão segurando um lado da face, olhar tristonho. Olha o relógio de pulso neste  instante.  Um ruído de carro o faz levar os olhos até a janela. Suspira longamente.

A porta da entrada se abre.

Dana entra com passos lentos.

— Mulder!

Ele a vê entrando e a olha com um sorriso:

— Dana...!

Ela para na soleira da porta. Não dá nenhum passo para entrar.

— Vem cá, Scully; estava te esperando.

Ela sorri, mas não sai do lugar.

— O que aconteceu, Scully? Por que não entra logo?

— Estou esperando você vir até aqui.

Ele levanta as sobrancelhas:

— Não entendi... — fala, mas vai até ela.

— Eu não estou sozinha, Mulder.

Ele dirige o olhar para adiante. Surpreende-se:

— William... meu filho!

— Oi. — é assim o cumprimento do jovem.

Dana sorri e o impele gentilmente para entrar na casa.

— É um prazer vê-lo aqui, William. — fala Mulder.

O jovem faz um sinal positivo com a cabeça, agradecendo.

Dana lhe tira dos ombros a mochila.

Ele apenas agradece num murmúrio.

Ela o encaminha a um dos ambientes da casa. Entrega ao filho  a mochila, que já havia trazido até ali. Abre a porta e o manda entrar. É um quarto bem confortável.

— Seu quarto; fique à vontade. — fala.

— Obrigado. — ele entra, fechando a porta.

Dana sai dali; caminha pelo corredor e entra em seu quarto, encostando a porta. Senta na cama; fecha os olhos e coloca as mãos sobre o rosto. Os incontidos soluços lhe saem do peito.

Mulder havia ficado parado, sem ação, desde o momento em que seu filho havia chegado. Ainda não caíra em sua mente a realidade do que está acontecendo. Olha ao redor, procurando sua amada.

— Scully! — chama.

Não ouve resposta. Anda pelo corredor; cenho cerrado, desejando saber o que está acontecendo, já que o silêncio na casa o está deixando até preocupado, após vários minutos.

— Scully! — chama novamente.

Chega até a porta do quarto, que está apenas encostada.

— Dana! — chama, vendo-a sentada na cama e se aproxima — Você está assim por quê? O que houve agora?

Ela retira as mãos do rosto; as lágrimas lhe haviam molhado a face.

Ele abraça-a, com todo carinho:

— Houve alguma coisa?

— Sim; houve sim! — ela se aconchega a ele — Meu filho... nosso filho, Mulder! Ele está aqui... com a gente! — diz, com voz entrecortada.

Ele a aperta mais contra si; afasta do rosto dela os seus longos cabelos louros:

— Calma, Scully; pode ter certeza de que, aos poucos, nosso filho estará certo de que aqui, em nossa casa, é o seu lar, a sua família.

Ela o fita com ternura:

— Tem certeza, Mulder? Será mesmo?

Ele responde com um abraço muito apertado e terno e explica:

— Scully, a criança precisa brincar, experimentar, mexer nas coisas, ter amiguinhos. Quando a mãe superprotege o filho, em geral é porque ela mesma é angustiada, medrosa, infeliz. Não sabemos como foi o crescimento do nosso filho naquela casa. Ele pode ter adquirido também uma timidez, que provém de um complexo de inferioridade pelos pais ou irmãos. Por exemplo: se ele ouvir algo assim:

— Você é um burro! Você não serve pra nada! Nunca será nada na vida.

São frases que desenvolvem na criança sentimentos de insegurança, o que faz com que não possa confiar em si mesmo. E existem mais situações que ocasionam no adolescente um comportamento cheio de problemas. Vamos esperar que seus pais adotivos o tenham tratado como convém, para ele ser um membro da família correto e amado.

— Entendo, Mulder. — ela fala e suspira profundamente; separa seu corpo do amado — Vou ver agora se ele já se arrumou como precisava.

— Ok, amor. Vai lá.

Dana se dirige para a saída do quarto.

— Psiu! — ele a chama e faz um gesto com os dedos deslizando no rosto — Enxuga as lágrimas, tá?

Ela sorri e faz o que ele lhe sugere.

***

O entardecer já havia chegado.  Cessara o canto dos pássaros nas árvores próximas à casa. Agora apenas o ruído dos grilos se pode ouvir.

Mulder, sentado numa poltrona, tem seus pensamentos fora do cenário onde se encontra, mesmo tendo os olhos fixos no livro que tem às mãos.

— Oi.

Mulder ao ouvir o cumprimento, leva o olhar na direção de William, que acabara de se aproximar.

— Oi, filho; é ... estou aqui me distraindo um pouco.

O jovem senta na poltrona próxima.

— Como está se sentindo? — o pai pergunta.

— Bem... — suspira.

Mulder balança a cabeça:

— Eu entendo; a falta daqueles que lhe deram seu amor, seus cuidados, vai demorar a se acabar.

— É isso. — confirma.

Mulder o olha fixamente:

— William, você está ansioso, louco para sair daqui. Não dá pra negar.

— Por que fala isso? Imaginação sua.

— Não precisa nem imaginar nada, filho. Vejo isso pelo modo como está sentado.

— Como assim...? — ele leva o olhar para os lados do corpo.

— Você está sentado apenas na beira da poltrona. Isso indica, William, o seu desconforto por estar neste lugar.

Ao ouvir isto, o jovem leva o corpo para ocupar todo o assento da poltrona. Esboça um sorriso:

— Desculpe, eu não queria...

O pai faz um gesto com a mão, indicando que tudo está bem.

— Você dorme bem, William?

— Bem, na maior parte das noites, tenho insônia.

Mulder faz um bico com os lábios:

— Olhe filho, isso é um sintoma de preocupação exagerada com o amanhã, receio de errar ou a incerteza quanto ao futuro.

Agora o jovem fica interessado nas palavras do pai:

— Que interessante você me falar todas essas coisas, que, na verdade, é exatamente o que passo atualmente.

— E então, filho? Você está sofrendo essas coisas porque tem medo de certas situações que você planejou ou imaginou e aí se angustia, como está se sentindo atualmente.

— Eu aceito sua opinião e concordo plenamente com suas palavras; não posso mentir lhe dizendo que está errado com suas ideias... e não sei como fazer para acabar com essa situação.

— Olha, o congestionamento de ideias no período noturno ativa a ansiedade e aumenta o fluxo sanguíneo no cérebro, provocando a insônia.

— Mas eu não posso fazer nada...

— ... pode, sim! Relaxe o máximo possível à medida que o dia escurece. Então deixe para trás o que se passou no dia; diga para si mesmo que amanhã é outro dia.

— Não dá... — se queixa, com ar frustrado.

— Sim, filho! Claro que dá! Tome um banho morno, escute uma música calma, leia um livro de poesias.

— Será mesmo? Nossa! Sabe que estou me sentindo bem por ouvir suas palavras?

Ali adiante, encostada na esquadria de uma porta, Dana ouve o diálogo entre pai e filho. Seu coração se sente aliviado. Percebe que, aos poucos, seu filho tomará uma solução favorável em relação aos seus verdadeiros pais. Suspira aliviada. Se afasta dali.

— Posso perguntar uma coisa?

— Claro! Sem dúvida! Sobre o quê?

— Esse livro que está lendo aí. Deve ser bem interessante... tem muitas páginas.

Mulder sorri:

— Sim. Importante também. Vou dar um exemplo: você estuda matemática, usa o Zero, um símbolo para representar o "nada". Ele é uma ideia antiga; até o segundo milênio antes de Cristo os babilônios representavam o nada com nada; simplesmente deixavam um espaço vazio.

— Nossa! Devia ser bem estranho...! — o jovem olha para o espaço, imaginariamente, usando números na mente; movimenta os lábios, como se estivesse vendo números.

Mulder o observa e gosta do que está acontecendo, porque mostra que a mente de seu filho está se distanciando um pouco de sua frustração.

— Então...? Está gostando disso? 

— Demais! — responde — Por favor, continue.

— Bem... essa prática possibilitava interpretações incorretas; no século dezessete, depois de Cristo, um matemático indiano criou regras para usar o Zero como um número e não apenas um marcador.

— Muito bom! E o indiano foi... Brahmagupta. — fala William.

Mulder faz um bico com os lábios. Franze o cenho. Larga o livro aberto sobre as pernas, bem surpreso:

— Eu não li o nome dele... como você sabe?

William dá um simpático sorriso:

— É que eu... posso... bem, como vou explicar...? Como você falou sobre ele, eu pude, num relance, ter em minha mente o nome do indiano.

O pai está boquiaberto.

"Bem que Scully já comentou que nosso filho tem certos dons especiais." — pensa o pai.

— Por favor, pode continuar? — ele torce as mãos.

— S...sim! Ok, filho. Essa ideia foi, então, aproveitada pelos árabes e alcançou o Ocidente no século doze por um matemático persa. Isso gerou controvérsia com a Igreja, que questionou se era certo atribuir valor a algo que não existe e preferiu manter o sistema romano usando...

— ... já sei! — interrompe a fala do pai — Aquelas letras I, V, X, D, C, etc.

— Exatamente isso, filho! Aí não era utilizado o Zero.

William joga a cabeça para trás:

— Gostei de saber essa história; sempre dou valor a esse tipo de conhecimento.

— Oi!

Os dois olham na direção da voz.

Dana, trazendo uma bandeja com sucos e salgadinhos, está com a fisionomia demonstrando carinho e tranquilidade.

— Vejo que estão falando sobre coisas interessantes.

— Sim! — se apressa o filho em falar.

— E agora, tomando um gostoso suco, vai ficar bem melhor. — diz Mulder — E depois vou também falar para você sobre a Anestesia.

— Ah, deve ser também muito interessante.

— Exato, filho... —  se antecipa Dana — ... as primeiras Anestesias eram criadas com as flores papoulas, colhidas no Oriente Médio e no Mediterrâneo Oriental, para produzir o ópio.

— Está aí, William. Em matéria de ciência, sua mãe é perita no assunto. — diz o pai.

— Claro! — ela fala com um sorriso suave e continua — Outros relatos contam sobre outros tipos de Anestésicos, tanto orais quanto inaláveis, usados em operações cirúrgicas, com esponjas embebidas com narcóticos e colocados sobre o nariz e a boca do paciente.

— Muito legal saber de tudo isso! — diz o jovem.

— Vamos agora fazer o lanche que eu fiz com todo carinho. — fala Dana enquanto coloca a bandeja sobre uma mesa e vai distribuindo os copos.

***

Deitado relaxadamente num sofá, William está olhando a TV; desenho de Super Heróis sendo exibido na tela. Com toda atenção ele aprecia o desenrolar da história que é mostrada. Mas, aos poucos, sua vista esmaece e ele vai, vagarosamente, se deixando levar pelo sono. O ar condicionado o deixara relaxado e isso o levara a sair do espaço real para o lugar dos sonhos.

A música suave insistente e contínua do aparelho parado ali naquele canal por não ter a continuação da programação é que o fizera adormecer.

Dana vem até ali e vê o filho tranquilo, de olhos fechados, talvez até em sonhos. Ela sorri e sem fazer nenhum ruído, usando com cautela suas passadas no assoalho, se afasta dali e caminha até outro ambiente.

Mulder a vê entrando; faz um bico com os lábios:

— Que carinha é essa?

Ela franze o cenho:

— Que carinha...? Ai, Mulder, não estou aguentando...!

Ele larga na mesa o óculos que está usando, se aproxima dela:

— Aguentando o quê... Scully? Do que está falando agora?

Ela se joga nos braços dele.

Mulder lhe segura o queixo, para olhá-la nos olhos.

— Não estou aguentando tanta felicidade, Mulder! Será que meu coração aguenta mais isso tudo?

Ele dá uma risada suave:

— Sim, amor meu; estamos com nosso filho aqui! Junto de nós!

— Sim! Nosso filho William! É muita felicidade Mulder...

— ... pelo  menos enquanto ele não quiser retornar para onde resolveu morar.

— E fico pensando, Mulder, por que ele não escolheu morar com o tio?

— Ah, Scully, você não o ouviu falando que a mulher do tio dele não tem muita simpatia e nem paciência com ele? Eu até faria o mesmo nesse caso.

— E por que seria isso, hein Mulder?

— Scully, na opinião de grande parte das pessoas, acha que os adotados são sempre mal-humorados, querem ser independentes, não se adaptam à vida de uma família.

— Eu quero nosso filho aqui, com a gente... para sempre.

Mulder a abraça com força; lhe beija os cabelos, as orelhas:

— Nosso filho vai ficar aqui, Scully, para sempre!

***

William acorda; nota, num relance, que se encontra num lar, muito diferente do local onde estivera por muitos dias antes. Esfrega os olhos.

— Já acordou, filho? Relaxou um pouco? — a mãe aparece, perguntando.

— Sim! — ele sorri — Vi um programa e acabei adormecendo.

— Isso faz bem. — diz o pai.

A TV exibe agora uns robôs num filme.

Mulder, olhando para a tela, diz:

— Sabe William que Leonardo da Vinci, em 1495 fez o esboço de um robô com características humanas e nos séculos dezoito e dezenove foram construídos inúmeros autômatos em tamanho natural e também um pato mecânico que mexia as asas e engolia comida?

— Sério?! — de pernas cruzadas sobre o sofá e voltado para o pai, ouve, cheio de curiosidade — Acho fantástico você saber tanta coisa!

Mulder dá uma risada:

— Leio muito e assim assimilo ideias. Olha só; tem mais: a IBM produziu seu primeiro computador em mil novecentos e sessenta e quatro e em mil novecentos e sessenta e nove uma série de robôs avançados acompanhou a Apolo onze...

— ... sei; que foi à lua!

— Exatamente.

— Eu acho que há uma previsão de que mais tarde, com o poder do processamento das máquinas, os técnicos preveem que até o ano dois mil  e cinquenta os cérebros robóticos...

— ... serão capazes de competir com a inteligência humana. — conclui Mulder.

— Não duvido nem um pouco. — o jovem acrescenta.

***

Dana, saindo na varanda da casa, sente que está como que vivificada pelas agradáveis horas que tem passado em companhia de seu filho e Mulder, que há algum tempo não lhe fazia companhia.

"Não quero mais pensar nesse tempo em que estivemos separados. Existe um amor imenso entre nós; eu sei que ele tanto quanto eu, sentiu demais a separação. E com nosso filho aqui, a casa se tornou um lugar imensamente abençoado, feliz!"

Ela olha o céu azul, as nuvens brancas esparsas, a grama verde ao redor. Apoia-se na grade da varanda. Leva a mão ao peito, como que agradecendo a Deus todos os momentos felizes pelos quais está passando. Lá ao longe, agora, já pode avistar um carro na estrada.

O veículo se aproxima cada vez mais. É estacionado. As portas se abrem simultaneamente.

— Oi! — ela grita e movimenta a mão, acenando.,

— Chegamos, Scully! — é Mulder falando.

Entram ele e o filho.

— E então? Com é que vocês estão? — ela pergunta, notando que seu filho está com a fisionomia bem descontraída.

— Nossa! Curti demais! — responde William.

— Ele gostou, Scully. — diz Mulder.

Os três entram na casa.

— Verdade, William? Distraiu-se bem?

— Sim! Sim! — ele tem um sorriso no semblante alegre — Eu nunca havia assistido um jogo de basquete.

— Não me diga! — ela se admira.

Mulder relaxa, se espalhando numa poltrona.

— Achei muito legal os jogadores darem os passos com a bola na mão e se um jogador comete seis faltas é eliminado do jogo. Esse jogo foi inventando em mil oitocentos e noventa e um, sabia disso?

— Interessante, filho. Como você aprendeu isso?

— Ah, porque eu lia sobre o jogo, porém nunca tinha assistido nenhum. E o inventor desse jogo foi James Naismith.

Dana passa a mão sobre os cabelos do filho:

— Estou feliz em vê-lo tão entusiasmado e sabendo de todas essas coisas sobre basquetebol, porque eu mesma não sei nada sobre o assunto.

— Mãe, agora vou tomar um banho... posso?

— Claro, filho! — ela sorri, satisfeita por ouvi-lo chamá-la assim.

William se aproxima de Mulder, ainda relaxado no sofá:

— Pai, posso lhe pedir uma coisa?

Mulder lança um olhar para Scully, dando a entender a satisfação que sente também por ouvir o filho chamá-lo de pai.

— Esteja à vontade, filho; o que você quer?

— Pode me levar outra vez num jogo de basquete?

Mulder se levanta rapidamente. Não tem como titubear com esse pedido; vai responder que sim, mas não pode evitar o desejo de abraçar seu jovem filho:

— Sem dúvida, filho; sem dúvida! Quando você quiser.

O filho abraçado ao pai está sorridente.

Dana vê a cena um pouco afastada.

Mulder faz um sinal com uma das mãos, chamando-a para unir-se aos dois.

O abraço a três está realizado com serenidade e carinho.

Separam-se em seguida.

Logo William se dirige para o banheiro.

— Mulder, acho que está justamente acontecendo o que tanto desejávamos, não é mesmo?

— Não tenha dúvida, Scully. Sabe, essas instituições que guardam menores, crianças e adolescentes, são responsáveis pela avaliação periódica das condições de reintegração às famílias de origem. As equipes desses lugares devem realizar um planejamento para aproximar, gradativamente, a criança e o adolescente às famílias e assim facilitar a construção de um vínculo de afeto entre eles.

 

***

Dana aguarda, impaciente, o retorno de Mulder, dentro do escritório no FBI. Sentada, ela bate um dos pés no chão, o que demonstra sua ansiedade . Apoia o rosto numa das mãos colocada no braço da cadeira. Suspira profundamente.

— Oi Scully.

Finalmente ela pode ver a chegada de Mulder:

— Puxa vida! Demorou, Mulder!

— Você quis vir antes, daí teve que esperar tanto. Paciência.

— O que o Skinner queria?

— Pediu para virmos amanhã, o mais cedo possível.

Ela aperta os lábios, insatisfeita.

***

William está sentado; olha a TV, mas não liga o aparelho; segura vários DVD's e os deixa de lado. Não sabe realmente o que deseja fazer naquele momento. Sua memória se volta para o passado, não muito distante, mas de uma preciosidade, que somente neste instante ele pode assim avaliar.

Vem então, nesse momento,   imagens dele, no tempo em que era um bebê; vê a fisionomia de sua mãe, de seu pai.

 

Sente que, mesmo sendo já um jovem, às vésperas de se tornar um adulto, um homem, sabendo que se fala pelo mundo que "O homem não chora!" percebe que seu coração emocionado não pode conter as lágrimas, que se acumulam em seus olhos.

— Oi filho! — os pais o cumprimentam.

— Ah, finalmente! Esperei tanto...!

— Sei William, mas é que tivemos um problema no trabalho. — explica a mãe.

— Eu entendo, naturalmente!

— E você, filho? Chegou aqui há muito tempo? Sabíamos que você viria para cá hoje e ficamos muito preocupados com nosso horário. — fala o pai.

William faz um gesto com a mão, como que dizendo:

— Sem problemas, pai.

O casal se senta ao lado do filho; conversam sobre vários assuntos, descontraidamente. Num certo momento William muda de expressão. Demonstra em seu semblante uma mistura de afeto, carinho, tristeza, decisão.

— Bem... — Mulder se levanta — ... vou lá para dentro trocar de roupa, ok?

— Certo, Mulder. — diz Dana — E eu vou cuidar de certas coisinhas a fazer para um gostoso lanche. Tá ok, filho?

— Não... por favor... esperem um instante porque...

— ... tem algo a falar? — o pai pergunta.

— Sim, pai. — abaixa a cabeça, leva uma mão fechada à boca — Pai... mãe... preciso lhes dizer que não vou ficar...

Dana abre os lábios, surpresa:

— Não vai...? Por que, filho? O que não o está agradando?

Mulder nada comenta. Permanece de olhos fixos no filho.

— ... por favor, deixem que eu termine o que preciso falar! Estou decidido. Não vou ficar mais na Instituição e...

— ... e...?  — o pai o interrompe, esperando o final da explicação.

— ... pergunto se posso ficar aqui, morando com vocês.

Como se sinos badalassem no espaço dando alegria, como se pássaros com seu canto lançassem melodias no infinito, assim parecia estar o ambiente, diante do pai, mãe e filho amado.

O céu azul, as montanhas esverdeadas cobertas pelo dourado sol através das janelas abertas, são testemunhas da cena do abraço aconchegante, terno, entre os três.

FIM