O SACRIFÍCIO

"Há homens que são como as velas;

sacrificam-se, queimando-se, para

dar luz aos outros."

Antonio Vieira

 

Capítulo 109

Dana, sob os lençóis, sente a morna pele de Mulder sobre a sua.

A perna dele, dobrada, está jogada sobre parte de seu ventre.

Rosto com rosto. Respiração com respiração.

Dana fixa, atentamente, os traços das feições do amado. Como quer bem a essa criatura que Deus pôs ao seu lado, compartilhando a quentura do mesmo leito!

Mas nada. Ele não responde. O sono está com todo o comando no corpo dele.

Nada ainda.

Dana já nem quase pode resistir. Os cabelos dele estão jogados na testa ampla, displiscentemente. Tem ares de menino levado dormindo após os folguedos. Os lábios bem desenhados formando um bico sedutor. O peito onde ela repousa sua cabeça todas as noites está pulsando, no ritmo do coração.

Dana olha em direção do berço de seu filho, que dorme tranquilo.

Continua, então, de olhos abertos fitando a suave luz de um dia nublado, através do vidro da janela.

Ela sente um leve movimento na perna dele, que está sobre seu corpo. Um leve estremecimento.

Dana distende os lábios num sorriso. Esperando.

Ela mantém-se quieta, fitando-o.

Mulder abre os olhos. Vira-se para cima e espreguiça-se longamente.

Olha e vê Dana, observando-o

Ele cobre todo o corpo dela de beijos estalantes.

Dana ri, divertida, deixando-se acariciar com os beijos mais que ruidosos dele.

Ele, enfim, retira seu corpo de sobre o dela. Volta para seu lado na cama.

Dana deixa repousando a cabeça em seu peito, novamente.

Ele suspira, profundamente. Fecha os olhos, enquanto acaricia as costas dela.

Permanecem calados. Por vários minutos.

Ela é a primeira a quebrar o silêncio.

Ele limita-se a fechar os olhos novamente, diante da indagação dela.

Dana senta-se na cama, fitando-o, intrigada. Vira-se de frente para ele, cruzando as pernas dobradas.

Ela baixa o olhar. Perturbada, já havia pressentido alguma coisa no ar.

Ele puxa-a para si. Contra seu corpo. Aconchega-a, carinhosamente, afagando-lhe os ruivos cabelos, que agora lhe caem até os ombros.

Ela curva-se sobre ele.

Ele evita o olhar dela. Acontecimento raro, pois os olhos dele estão sempre prontos a esquadrinhar-lhe a mente e o coração.

Dana impacienta-se.

Mulder assente, movendo a cabeça.

Ele segura uma das mãos aflitas dela.

Ele senta-se na cama.

Dana repara agora no ar abatido dele. Sente-se em pânico.

Súbito, numa voz murmurante e sombria, em tom gutural, ele explica, fitando-a ardorosamente.

Mulder, em seu pensamento, havia tentado imaginar como ela reagiria a tais palavras.

Ele levanta-se, suavemente, e coloca-se diante da janela, procurando enxergar alguma coisa, mas em seus olhos as lágrimas o impedem de ter uma boa visão lá fora.

Dana continua no mesmo lugar em que está. Inerte. Fria. Sente-se como se estivesse sobre uma grande geleira. Só. Desamparada. Prestes a rolar num imenso precipício de dor e ali deixar-se ficar até extinguir-se de seu peito o último sinal de vida.

Mulder vai até o berço do seu filho. Curva-se sobre ele e beija-lhe a cabeça de raras penugens macias.

Dana vai em direção de Mulder.

Ele aguarda junto ao berço.

Ela aproxima-se. Seus olhares fundem-se e dialogam a linguagem do amor e da compreensão. E ela entende o sentido daquele sacrifício que está por vir.

Ele estende os braços que servem de abrigo para que ela neles se ampare.

Choram baixinho a sua dor. Os soluços discretos de Dana misturam-se ao gemido angustiante dele.

Os minutos transcorrem como longas e atormentadas horas de sofrimento total.

No pensamento de Mulder as idéias embaralham-se.

"Tudo está acabado! Agora que poderíamos viver como uma família comum, o trágico destino vem atrapalhar nossa vida! Não dá...! Não dá pra viver mais sem ela! Sem eles! Agora são dois seres de quem preciso cuidar! E eu os amo, como à minha própria vida!"

Em Dana a mente nada pelo mar de sua desesperança, sentindo-se como uma náufraga, tentando segurar-se em restos de alguma coisa para sobreviver a essa tempestade de desgraça.

"Sem Mulder! Sem ele, novamente! Eu conseguirei manter em mim a chama da vida? E meu filho... sem o pai...!?"

Dana soluça entre os braços de Mulder.

Gostaria mesmo que, neste exato momento, um raio caísse sobre sua cabeça e lhe retirasse a vida que não lhe serve para mais nada... mas... e seu filho? Sua criança tão pequenina e inocente? O fruto do seu amor sofrido por Mulder, nesses angustiantes quase dez anos de uma convivência diária? E agora essa aflição...

Ele beija-lhe os cabelos suavemente, enquanto uma lágrima cai, escondendo-se entre os fios ruivos que aninham-se em seus braços.

"Quem se aflige antes do tempo,

se aflige mais do que o necessário.

Sêneca.