MÓRBIDOS PENSAMENTOS

"O pensamento é um discurso

que o espírito tem consigo mesmo."

Xavier de Maistre

Capítulo 203

Dana já voltara do confortável camarote ao lado do seu, onde sua mãe e seu filho estavam instalados, prontos para dormir. E enquanto se despe para vestir em seguida a longa camisola rendada, seus pensamentos partem em ondas céleres para algum tempo atrás.

* * *

Ela tinha em mãos documentos relativos ao menino Gibson Praise, quando, passando pelo corredor, à procura de Mulder, lá estava a cena terrível:

Mulder, diante de sua ex, Diana Fowley, mantinha suas mãos presas às dela e fitavam-se, quem sabe, ardorosamente, talvez, com palavras meigas, relembrando cenas felizes do passado que haviam desfrutado juntos.

Oh, dor intensa! Desengano! Frustração! Ciúme!

Sim! Foram esses sentimentos todos, num roldão, que pululavam na sua despedaçada alma, naquela ocasião.

Ela conseguira retornar ao carro como que a flutuar. Não sentia o chão sob seus pés. A cabeça ardia; as pernas lhe tremiam; o coração acelerava.

Terrível quadro aquele que lhe roubara a perspectiva de ser feliz, com o homem que amava.

Sentada no banco do carro, seu desejo mais premente era de desaparecer do mundo naquele instante. Sentia-se nada... ninguém... sem perspectiva de vida... e infeliz.

* * *

Dana aperta os olhos ante esses mórbidos pensamentos. Mas sabe agora porque sua mente havia se voltado para esse fato antigo. Achara, a seu ver, a passageira que com ela e Mulder conversara, muito parecida com a falecida Diana.

"Oh, não! Tenho que tirar isso da cabeça! Mas... - aperta os lábios e suspira - ... mas, realmente, aquela mulher lembra a Fowley... seu sorriso... o olhar... os cabelos..."

Ouve, neste instante, Mulder tossir alto na cama, remexendo-se, com um gemido.

Ela termina de se arrumar para deitar, ao colocar uma gota de perfume dentro do decote e atrás das orelhas. Aproxima-se da cama e nela senta-se, vagarosamente, para não despertar Mulder, que já havia deitado há uma hora atrás.

Dana deixa o corpo ir deslizando para o colchão, delicadamente.

Num relance havia sentido a cabeça rodar, levemente. Embora tomando medicamentos para melhorar os inevitáveis enjôos, essa ruim sensação lhe está massacrando as entranhas.

"Mais um filho...! - pensa - Um irmãozinho para William... ou será uma irmãzinha? Oh, Deus! E por que temos que estar assim inconstantes em cada cidade? Ajude-nos a nos livrar das perseguições... estamos voltando à nossa terra e precisamos de paz..." - seu pensamento é interrompido por mais um gemido de Mulder, ao seu lado.

Dana vira a cabeça para observá-lo.

Ele havia gemido, porém parece dormir, ainda. Seus lábios bem desenhados e sensuais estão abertos.

Ela fecha os olhos, tentando adormecer. Abre-os, novamente, para apagar a tênue luz do abajur. Ajeita-se em seguida, para deixar vir o sono.

Mulder tosse. Senta-se na cama.

Ele joga os pés para fora do leito.

Mulder aguarda. Sua cabeça está incrivelmente tomada por terríveis sensações. Dor. Intranquilidade.

Ele engole o comprimido com a água.

Dana coloca o dorso da mão sobre o seu peito, tentando sentir-lhe a temperatura.

Ela o ajuda a deitar-se, novamente. Deita-se, também e acaricia-lhe a testa, procurando ajudar o efeito do analgésico fazer-se mais rápido.

Enquanto o ajuda a retornar ao sono, fica escutando o rumor das águas do oceano, batendo, incessantemente, no casco do imenso transatlântico.

* * *

No amplo e luxuoso salão de refeições, Mulder toma, sem muito apetite, o café da manhã.

Sozinho à mesa, não se dá conta de que alguém, à distância, o observa com interesse.

Ele nota que sua cabeça, na verdade, ainda está perturbada. Nem sabe se exatamente é dor ou qualquer outro tipo de mal-estar que está sentindo. Só entende que necessita tomar outro analgésico.

A voz feminina soa, murmurante, junto dele.

Mulder ergue o olhar; faz um sinal com a mão, assentindo.

A mulher agradece e senta-se.

Ele sorri, meio desanimado.

Ele franze o cenho, intrigado. Tem plena certeza de que ainda não havia falado com ninguém a respeito de informações particulares e nem o seu nome.

O ex-agente sente que a sensualidade que vibra na voz suave da desconhecida, o faz agora fitá-la dentro dos olhos. Uma atração sem limites o leva a acariciá-la com o seu desbravador olhar.

O garçom aproxima-se para servi-la; afasta-se, em seguida.

Ela ri, gostosamente. Coloca a mão sobre a dele, que está segurando a asa da xícara sobre a mesa.

Mulder sente o contato morno da pele dela junto à sua Percebe que gosta de sentir essa sensação. Continua com o olhar voltado para o semblante calmo da mulher.

Ele sorri, desconcertado. Mas não consegue desviar os olhos da estonteante figura à sua frente.

Ele retira a mão que ela ainda mantém sob a dela. Toma, num só gole o restante do café. Sente a garganta doer sob o ardor da quentura da bebida. Levanta-se. Sente-se ainda mais perturbado, agora. A cabeça estala de dor.

Mulder, com um gesto de despedida, retira-se.

Caminha meio grogue pelos corredores. Desce as escadas para o andar de seu camarote. Passa a mão pela testa úmida de suor. Em sua retina está intacta e incrivelmente nítida a imagem de Maureen.

Ao mesmo tempo, tenta tirar da memória algo que o está deixando intranquilo. A figura de Diana Fowley.

Entra no camarote, batendo a porta com estrépito.

Dana, vendo-o chegar assim, fica a observá-lo por alguns segundos.

"A casa da saudade chama-se memória."

Coelho Neto