USANDO O BOM SENSO

 

"O bom senso é saber o que se deve fazer;

o espírito é saber o que se deve pensar."

J. Joubert

Capítulo 32

Mulder chegara ao apartamento cansado, acalorado, mas disposto a nesse dia dar uma arrumação em seus guardados, retirando o supérfluo.

Após beber um copo d'água, coloca ali mesmo sobre a pia o telefone celular que tem em suas mãos.

Com alívio, retira a roupa, ficando de short e sem camisa.

Precisa entrar em ação, embora cansado. Não quer demorar-se em sua arrumação, pois logo deseja estar com sua Scully.

Ele começa a fazer a seleção das coisas que pretende jogar fora.

Fitas, revistas, papéis, envelopes usados, fotos antigas, que já não lhe interessam.

Vai amontoando no chão as coisas que tem que jogar no lixo.

A cada hora que passa, o sono tenta derrotá-lo, mas ele não se deixa vencer.

Está firme no seu propósito.

Olha o relógio. Novamente começa sua arrumação.

Havia esvaziado estantes, móveis e concentra-se agora em colocar todos os objetos em desuso em caixas de papelão, que já espalham-se pela sala.

Pusera um rádio para tocar. A música embala-o, enquanto faz sua tarefa.

Em sua memória um sem fim de cenas de sua vida, desenrola-se, enquanto as mãos ágeis cuidam do serviço a que se propusera fazer.

Os seus pensamentos correm soltos.

A infância longínqua onde o maltratava as discussões entre os pais, o sofrimento... a sua infinda busca pela irmã desaparecida... busca que o deixara sem uma certeza final... a sua solidão anos a fio entregando os pensamentos e o coração ao trabalho, sem treguas... o cansaço de estar só... noites vazias... frias... longas, sem ninguém... sem Scully... esse amor que lhe penetrou na vida sem pedir licença... entrou na sua vida como uma brisa leve, sem tormentos, sem traumas, nem sofrimento... porem depois tornara-se um vendaval na sua vida, carregando a sua estrutura emocional, o seu direito de sentir-se livre e independente, de um homem que desejaria entregar-se talvez ao celibato de maneira integral...

Mulder pára, por instantes, o que está fazendo.

Um leve sorriso esboça-se em seu rosto. Lembra Dana. A sua querida Scully. Como a ama!

Seu pensamento vai até aquele dia em que, pela primeira vez fizeram amor.

Ele fita o assoalho, continuando a pensar.

Dana representa toda a sua vida. Não lhe interessa mais viver sozinho, não lhe interessa mais ficar sem a ajuda de Scully, sem o seu carinho, sem a sua ternura, sem a sua atenção... sem o seu amor.

Rememora os momentos em que está com Dana... seu corpo pequeno, frágil entre seus braços fortes... o prazer que ela lhe dá, entregando-se toda, fazendo-o sentir o seu estremecimento de prazer nos momentos em que estão no auge do seu ato de amor.

Mulder sente seu corpo ansiar pela presença da mulher que ama.

Levanta-se para ir até a cozinha e tomar mais um copo d'água. E assim o faz.

Ao voltar-se para deixar a cozinha, seu olhar cai sobre algo dentro da pia... que neste momento está com bastante água acumulada em seu interior.

Acabara de ver o seu telefone celular dentro da pia. Havia caído na água.

Tira-o dali, rapidamente, e o sacode.

Vários fios brilhantes de água escorrem do interior do aparelho.

Mulder aperta-lhe as teclas, preocupado. Nada funciona, no entanto.

Havia lembrado do dia em que teve estragados o telefone celular e o relógio digital, devido a inundação no apartamento causada pelo colchão d'água que havia furado, numa segunda-feira atormentada de sua vida.

"Resta o outro." - pensou, dirigindo-se ao telefone fixo sobre o móvel.

Num ato instintivo, coloca o aparelho no ouvido, talvez para certificar-se de que está tudo bem.

Somente um ruido interminável faz o telefone, o que impede-o de fazer alguma ligação caso seja necessário.

Mulder aborrece-se. Bate com força o telefone na base. Sente-se irado. Bufa.

Aperta o lábio inferior. Seus maxilares pulsam sob a pele, indicando sua indignação.

Mas não pode perder tempo em reclamar o defeito. Tem que continuar o seu serviço.

Recomeça a fazer a arrumação. Tenta apressar-se. Ainda tem muita coisa a fazer.

Olha o relógio. Vê que ainda pode continuar por mais algum tempo, se agir com rapidez.

* * * * * *

Scully sente-se revoltada no momento.

Mas será que é possível mesmo ter acontecido o que está pensando? Mulder?! Na festa de despedida de solteiro do colega?!

Nunca iria acreditar numa coisa dessas! E ele lhe dissera estar louco para ir para casa! Como pôde fazer isso? Não quer aceitar, porem tudo se encaixa. Viram-no sair com o Martin.

"É capaz até de ter ido beber um pouco, fazer um brinde... uma coisa assim... pode ser. Mas não! Não é possível isso ter acontecido!"

Um terrível enjôo a faz sentir a respiração pesada. Sente-se doente. Extremamente mal.

Mas como ir para casa neste instante, se a dúvida abate-se em seu cérebro, martelando-o doidamente?

O burburinho do entusiasmado pessoal a sair é surpreendente. Nunca vira tanta euforia antes, dentro do Bureau.

Uma tonteira a faz desequilibrar-se um pouco, após chegar ao hall do prédio.

"Labirintite ou ... alguma moléstia referente àquele tumor que tive na cabeça tempos atrás... ou simplesmente um estresse?" - pensa, um pouco preocupada.

Não sabe ao certo. Só sente que alguma coisa anda errada no seu organismo.

Já distante pode avistar Kate rindo, indiscretamente exagerada, juntamente com um colega de trabalho.

"Todo esse pessoal vai até a festa! E Mulder? Então ele já foi mesmo com o Martin? Mas como posso ter certeza?"

Dana, caminhando pela calçada, tenta aproximar-se de um dos funcionários do Bureau, que está abrindo a porta do carro.

Ela o cumprimenta.

Ele a olha com ar alegre.

Sai em passos rápidos dali.

"Bem... - pensa ela - ...Mulder talvez fique por lá uma meia hora... ele sabe que eu o estou esperando, doida pra..." - estanca seus pensamentos, neste instante.

Resolve, por fim, ir mesmo para casa.

Faz sinal para um taxi que vai passando.

* * * * * *

O suor escorre pelo peito de Mulder.

Sente-se cansado, fatigado mesmo.

De um lado para o outro, carregando como entulho as caixas cheias de objetos inúteis, ele vai acumulando-as uma a uma perto da porta, a fim de tornar-se mais fácil na hora de levá-las para a lixeira.

* * *

Scully chega em casa. Retira o casaco; coloca-o no espaldar de uma cadeira. Passa os dedos entre os cabelos, sentindo-se afogueada, cansada, deprimida, péssima.

Vai até o banheiro e lava o rosto. Enxuga-o

O que fazer? Ficar em casa? Correr atrás de ver o que Mulder está fazendo?

Tentar não se impressionar muito com o acontecido? Ou desmascará-lo bem no lugar onde se encontra agora e jogar-lhe na cara a sua raiva na frente de todos?

Precisa pensar o que fazer corretamente.

Afinal de contas tem que usar o bom senso e não se deixar levar como qualquer mulher enciumada, que não entenderia que o seu amado simplesmente fôra a uma festa banal, de colegas de trabalho!

Precisa pensar! Precisa pensar!

O relógio já marca oito horas da noite.

Dana começa a ficar intranquila.

Pega o telefone celular e disca o número de Mulder. A voz eletrônica informa não poder ser efetuada a ligação.

Dana aperta, aborrecida, a tecla de desligar.

Deixa passar alguns minutos. Tenta novamente, andando de um lado para o outro.

A mesma coisa acontece.

Uma profunda e absurda raiva começa a tomar forma dentro de si.

Toma as chaves do carro e o casaco. Sai depressa do apartamento.

Entra no carro estacionado à frente do prédio

* * * .

Já chegara ao lugar onde o colega dissera estar acontecendo a festa.

Pára o carro à frente do lugar e observa. Muitas pessoas indo e vindo.

Um alarido vem do interior da churrascaria.

Scully tenta levar o carro a um ângulo de onde possa observar melhor o interior do lugar, discretamente.

Antes, porem, de dirigir-se para o extenso estacionamento dali, um pensamento toca-lhe a mente.

"Por que fazer isso? O melhor é voltar para casa! Assim talvez Mulder possa sentir que não ando tolhendo seus passos."

Dirige o carro para sair dali.

Resta a dúvida se volta para sua casa.

"Não. - pensa - Vou para o apartamento dele. Vou tentar fazer o que meu coração comanda. Não quero criar um clima com ele, não quero maltratá-lo e muito menos ser por ele maltratada. Quero fazê-lo compreender que entendo o que ele quis fazer: divertir-se um pouco... sei lá!"

Com os dedos tensos segurando o volante, vai para o apartamento de Mulder.

* * *

Toma suas próprias chaves e abre a porta. Sente que tem que fazer um pouco de esforço para abrí-la.

"O que está acontecendo aqui? - diz para si.

Empurra a porta com força. Esta cede e por fim pode ser aberta, permitindo-a entrar.

Quatro ou cinco caixas cheias estão quase encostadas na porta, o que havia causado dificuldade para que Dana entrasse.

Sua vista alcança neste momento a cena mais doce, terna, bela e enternecedora que já tinha assistido em toda a sua vida.

Uma intensa ternura toma conta do seu sensível coração.

Ali está Mulder, no chão, entre as caixas e papéis amassados e rasgados, adormecido, empoeirado. Mas a fisionomia é doce, serena, tranquila, como se nada de errado tivesse feito em sua vida, muito menos nesta noite, que tanta dúvida havia causado a Dana.

Os olhos dela enchem-se de lágrimas. Está feliz. O seu Mulder está nesse lugar, sossegado, dormindo como um menino exausto após os folguedos.

Ela retira os sapatos, abaixa-se junto a ele, passa levemente a mão em seus cabelos castanhos desarrumados. Deita-se junto ao seu amado. Não quer acordá-lo. Para que? Deixa que ele descanse. O dia que haviam passado nas investigações fôra cansativo, principalmente para o cérebro de Mulder, que sempre está a usá-lo mais do que deveria.

Ela deita-se quieta, sem fazer ruído.

* * *

Mulder abre os olhos.

Dana já havia se levantado.

Diz isso e vai logo arrastando as caixas em direção à porta.

Mulder levanta-se rapidamente para completar tudo o mais que tem a fazer.

Em meia hora tudo está já nos devidos lugares. Lixo na lixeira. Sala com tudo no lugar.

Pára, fitando-o intrigada.

Mulder a olha fixamente.

Ele meneia a cabeça, positivamente, para que ela possa entender que o celular "já era".

Mulder aproxima-se. Rosto, peito, coxas e mãos sujas de poeira, mas os olhos verdes transparentes brilhantes e perscrutadores, que persistem em sua limpidez, fitam Dana com paixão.

Dana sorri.

Ela dá uma risadinha.

Aproximam-se como se fossem duas peças imantadas que se atraem.

Mulder toma-a nos braços como uma boneca. Carrega-a para o banheiro.

Coloca-a no chão, agora.

Olham-se sorrindo mansamente.

Agarra-a com força, e um pouco curvado sobre a baixo estatura de Dana, cobre de beijos seu rosto, pescoço...

Ela sente o peito nú e quente dele encostado ao seu corpo.

Deixa que ele lhe retire as peças de roupa uma a uma. Um das peças mais íntima ele deixa permanecer, talvez para sentir o prazer de fazer saltar de dentro dela os botões de carne rosada quentes e desejadas de sua Scully.

A água do chuveiro derrama-se por sobre a pele de seus corpos, porem o incêndio da paixão que os abrasa não pode ser por ela apagado.

E amam-se ali mesmo, sob a água tépida do chuveiro.

* * *

Ele a acompanha para a cama.

Joga-se sobre os lençóis, com um gemido de prazer e paz.

Scully o vê deitado, tranquilo, ar feliz, como se fosse um garotinho, com as pernas espalhadas sobre os lençóis.

Ela fita-o com imensa ternura.

"E se eu tivesse agido de outro modo nesta noite? E se não tivesse a curiosidade de vir até aqui e daí ficar curtindo uma raiva em imaginá-lo numa festa, enquanto ele estava aqui, longe de todas aquelas falsas alegrias e as perigosas tentações?"

Dana estende, fazendo voar no espaço do quarto, o grande lençol sobre toda a cama, cobrindo assim a ele também. Deita-se a seguir.

Mulder a prende a si, para que repouse a cabeça sobre seu peito.

Mulder a observa detalhadamente. Nota que quando ela sorrí, várias linhas delineiam-se ao redor de sua boca. Nota as inúmeras e sedutoras sardas nas faces. Nota que em seu sorriso, ela levanta um dos lados do canto da boca de lábios bem desenhados.

Ele aperta-a, carinhoso.

Ela vê que as pálpebras dele estão pesadas. Beija-as com ternura. Passa, em seguida, os dedos sobre elas, mansamente.

A mão dele vai de mansinho em direção ao corpo dela, tocando-o docemente.

Scully ainda está sem sono.

Aos poucos sente que os dedos dele diminuem a pressão sobre seu corpo e um leve ressonar indica-lhe que o sono nele já chegara.

Na sua mente dispersa, uma quietude apodera-se e ela já não sente mais nada à sua volta.

Dorme.



"O sono é o doce consolador dos homens.

Dá-lhes repouso e o esquecimento de

seus pesares."

Tasso