ADVERSIDADE
"A adversidade vem-nos de Deus,
como degrau por onde nos eleva."
Chateaubriand
Capítulo 40
O pianista faz soar os suaves e melodiosos acordes do instrumento no grande e luxuoso salão.
O casal faz a sua refeição calmamente, conversando baixinho, enquanto seus ouvidos sorvem avidamente a música que sai do piano.
- Scully? - corta algo com os talheres no prato.
- Hum?
- Sabe que nós já deviamos ter feito uma travessia dessas há muito tempo?
- É... boa idéia sua fazermos essa rota entre essas duas cidades, mas se fosse noutros tempos, acho que não teria graça nenhuma. - ela leva um bocado à boca.
- Não? - ele ri, irônico.
- E você sabe porque.
- Eu sei?
- Naturalmente, Mulder. Só há uma resposta plausível para sua dúvida no que estou falando.
- Scully... - fala com o garfo no ar - ...dá pra ser menos formal?
Dana dá um meio sorriso:
- Então, falando claramente como você quer, se fosse noutro tempo nós não estariamos transando...
- Aaah! Chegou ao ponto, lindinha! Concordo com você!
Ambos sorriem. Olham-se nos olhos, profundamente apaixonados.
- Scully...
- O que? - ela coloca os talheres no prato e o fita, amorosa.
- Não sei mais viver sem você.
- Faço das suas as minhas palavras, Mulder.
Mulder dá um discreto sorriso, ao ouvir as palavras quase formais que Dana sempre usa.
Logo em seguida a vê parar de fazer sua refeição.
- Por que parou de comer?
- Não quero mais, de jeito nenhum.
- O que houve?
- Não dá, Mulder. O enjôo...
Agora ele também coloca os talheres no prato.
- Ah, Scully, você estava tão bem!
Ela faz um trejeito no rosto como se dissesse:
"E o que posso eu fazer?"
- Eu preciso sair, Mulder! - pede
- Claro, vamos.
Levantam-se.
No íntimo Dana imagina se, na realidade, estava saindo porque o enjôo a estava perturbando ou se eram os olhares um tanto insistentes do homem lá na mesa adiante, que a estava incomodando.
Esse homem já a havia abordado pela manhã e sente-se irritada com a insistência de seu olhar sobre ela.
Mulder e Scully descem os largos degraus da grande escadaria de madeira, com corrimão em arabescos.
- Você quer ir para o camarote?
- Não, Mulder. Lá fora é melhor por causa do ar puro...
Ele a faz parar. Coloca as mãos sobre os ombros dela:
- Scully... isso não é normal. E você está protelando uma ida ao médico. O que está havendo, afinal?
Ela, pequena diante dele, levanta a cabeça para olhá-lo diretamente nos olhos.
- Mas não está havendo absolutamente nada, Mulder! Apenas estou adiando a ida a um médico por absoluta falta de tempo.
- E nesses dias que antecederam nossas pequenas férias?
- Nesses dias...? - ela ri - Você não notou que tive dias repletos de coisas a providenciar para a viagem? Mulder ... e o Bureau não nos dá muitas horas livres.
- Bem... é verdade, mas... Scully, tanto eu quanto você já tivemos várias agressões em nosso organismo, de modo que devemos nos prevenir, sempre, de algo que algum dia possa nos tornar vulnerável a algum mal, alguma coisa que jamais tenha cura, até...
- Mulder! Mas que sinistro o que você diz! Não se pode pensar assim! - olha-o, atentamente.
Dana percebe no olhar dele algo mais profundo que uma simples preocupação.
- Mulder...? - faz um trejeito na cabeça para fazê-lo voltar à realidade.
Ele parece distante.
Mulder continua fitando-a, esquadrinhando com os olhos verdes acinzentados até o mais profundo do coração de sua amada.
"Scully, me ajuda..." - ele pensa, com a aflição a querer amargurar-lhe o peito.
- Vamos, Mulder. Vem! - ela o puxa pela mão, encaminhando-o para o convés, para distrai-lo daquele mutismo.
Poucas pessoas estão a caminhar por aquele local, agora. Somente os que já haviam feito suas refeições.
Dana e Mulder andam, vagarosamente, sentindo a brisa que vem do mar a lhe tocar a pele, agradavelmente.
Mulder abraça Dana pela cintura para assim levá-la a caminhar através do longo convés do navio.
Param em certo momento e ficam encostados à amurada, quedando-se a contemplar a beleza amedrontante do que se descortina lá fora.
- Scully, amanhã pela manhã já desembarcaremos de volta. Que pena, hein?
- Mesmo.
- Scully...?
- O que?
- Aqui, vendo seu rosto sob esse luar, você me parece irreal.
- Hum... e será que não sou mesmo?
- Tenho certeza que não.
- Como pode provar isso? - ela o fita, desafiadora.
- Com todos os momentos que já a toquei...
- Ei! Desde quando sou algum instrumento?
- Boba! - ele sorri e aperta-a contra si.
- Ah, Mulder! - exclama, em tom queixoso.
- O que foi?
- Quando você dirige esse sorriso pra mim...
- O que acontece?
- Eu tenho vontade de...
- Hum... de que? - fita-a com seu olhar perscrutante.
- Pára, Mulder!
- Não estou fazendo nada! Apenas te olhando!
- E é o suficiente... - faz uma pausa - ... vamos andar.
- Vamos, sim.
Voltam a caminhar, vagarosamente.
Os dois escutam o chamado.
Mulder volta-se para ver.
- Senhor! - um jovem o chama.
- Está falando comigo? - pergunta Mulder.
- Sim, senhor! É o senhor que é detetive?
Scully havia também parado, a fim de olhar quem estava chamando Mulder.
- Não... eu sou um agente federal.
O rosto do rapaz ilumina-se:
- Ah, ótimo, senhor! Poderia vir comigo até lá em baixo?
- Lá em baixo, onde? - quer saber Mulder.
- Fazer o que? - pergunta Dana, por sua vez.
- Na casa das máquinas. - informa.
- O que houve?
- O capitão pede que o senhor vá até lá ajudá-lo a resolver algo... um tanto complicado.
- Mas de que se trata? - Dana insiste.
- Na verdade não sei informar ao certo. Por favor, senhor... - fica esperando Mulder dizer seu nome.
- Mulder. Fox Mulder. - informa o agente.
- Vamos, por favor, senhor Mulder.
Mulder volta-se para Dana:
- Scully, espera-me aqui?
- Não, Mulder. Vou para o camarote.
- Tudo bem. Até já.
Mulder afasta-se, acompanhando o rapaz.
Dana não gosta de sentir o mal-estar que a perturba neste momento. Não é um mal-estar físico, mas algo que perturba e incomoda sua mente.
Dirige-se às escadarias, a fim de ir para o camarote.
Penetra pelo longo corredor. Chega à porta e gira a chave na fechadura. Entra e fecha a porta por dentro.
Ali mesmo, de pé, espreguiça-se, longamente.
Sente o corpo cansado, fatigado. Sem entender o porquê.
Toma uma valise e começa a arrumar nela roupas e objetos pessoais, para que no dia seguinte possam desembarcar, sem ter muita coisa, ainda, para guardar.
Durante quase uma hora preocupa-se somente nas necessárias arrumações.
Um leve torpor no seu corpo indica-lhe que precisa de descanso. Tem um pouco de sono, também.
Já havia notado por várias ocasiões que, ultimamente, anda muito sonolenta.
Deita-se.
* * * * * *
Bastante tempo se havia passado. Dana já começara a preocupar-se.
Já havia trocado de roupa, estava mais à vontade, pronta para dormir, mas diante do adiantado da hora e a ausência de Mulder, resolve vestir-se novamente e sair à procura dele.
Dirige-se à cabine do capitão do navio.
Bate à porta.
O homem aparece com seu uniforme.
- Pois não, senhora. Boa noite!
- Ahn... capitão...? - aguarda.
- Sim, senhora.
- Senhor, estou à procura do Agente Mulder, que veio aqui a seu pedido.
- Ah, sim! O Agente Mulder! - olha o relógio - Mas senhora, há mais de trinta minutos o Agente Mulder saiu lá da casa de máquinas comigo.
- Trinta minutos?! - ela franze o cenho, preocupada.
- É, sim. Foi um assunto um tanto rápido que nós resolvemos.
- Não é possivel! Mas tudo bem.
- Senhora, quer que a ajude em alguma coisa? - ele tem um ar penalizado.
- Não, obrigada.
Despede-se e sai dali.
Já sente-se completamente atormentada.
É como se algo a estivesse alertando de uma adversidade atingindo sua vida.
"Onde Mulder pode ter se metido, se há meia hora poderia já estar comigo? Coisa estranha!"
Sente uma palpitação extra no seu coração.
Volta a seu camarote.
Uma batida à porta faz-lhe desaparecer as rugas entre os olhos. Corre a abrir a porta, aliviada.
No seu semblante, porem, desvanece-se a alegria. Uma desagradavel surpresa a aguarda.
Diante dela está o rapaz que, com o olhar insistente a tinha incomodado, no salão de refeições.
- Boa noite, Dana!
- O que o senhor deseja?
- É só uma conversa rápida.
- O meu... marido está dormindo e não quero...
- Pode deixar Dana, eu sei que ele não está aqui.
- Como?! - espanta-se.
- É... ele está lá em baixo... com o capitão.
- O senhor é um atrevido! Ele não está lá!
- Calma, moça! - espalma as mãos.
- Onde está Mulder? - quer saber.
Ele dá uma risada. Com um pontapé na porta, esta fecha-se atrás dele, permitindo-o ficar do lado de dentro do camarote.
- Mas o que o senhor está querendo?
- Fazer uma visita somente, Dana!
- Quem lhe disse o meu nome?
- Ora, Dana Scully, a destemida Agente Especial do FBI, viajando com seu parceiro Fox Mulder, como dois bons... amigos! - faz uma pausa - O FBI sabe de seu... de seu casamento, Dana?
Scully irrita-se com o intruso.
- O que está querendo insinuar? Que vai denunciar-nos? Não é necessário preocupar-se com isso. Nosso superior já tem conhecimento...
- Ora viva! As coisas mudaram dentro do FBI! Tudo diferente, agora!
- Retire-se daqui. - fala Dana, em voz baixa, mal contendo sua ira.
- Calma, já disse.
- Saia daqui! - fala mais alto, agora.
O desconhecido dá uma escarnecedora risada.
Só não esperava é que, num seu gesto distraido, Dana já pegara da valise sobre uma poltrona sua pistola, a qual agora aponta para o intruso.
- Mas o que é isso? - ele ri, nervoso - Eu não acredito no que estou vendo!
- Precisa ser mais crédulo, senhor.
- Espere, espere! - espalma a mão - Eu já estou de saida, claro! Claro!
Dirige-se para a porta.
Num gesto inesperado, porem, o homem retorna seus passos para ir em direção de Scully, tentando atacá-la.
Com extrema rapidez, ela puxa o gatilho e uma bala é disparada, penetrando numa das paredes de madeira do aposento.
Com o surpreendente gesto da Agente, o desconhecido pára, subitamente, ficando estático diante do iminente perigo para sua vida.
Os olhos azuis de Dana faiscam de ira sobre o ameaçador desconhecido.
- Na próxima vez não vou mirar a parede. - avisa ela, pausadamente.
"Irar-se é vingar as faltas
alheias em nós mesmos."
Alexander Pope