OS CAMINHOS DO CORAÇÃO

 

"Por mais longe que o espírito vá,

nunca irá mais longe que o coração."

Confucio

 

Capítulo 60

O dia fôra inteiramente sombrio, nevoento, frio e incomodativo, porém não tanto quanto Dana Scully sente em seu interior.

Desde os primeiros raios da manhã, estivera em aflição.

Toda a tribulação do dia nem pode ser comparada ao tormento em que está sua vida. É como se sua vida fosse exatamente uma tormenta, uma terrível e destrutiva tempestade, cujos raios faiscantes estivessem a espalhar as centelhas em seu cérebro e os trovões ressonantes dentro de seu coração a fizessem sentir até nos ouvidos os horrores de sua tormenta interior.

Tudo motivado por uma notícia , uma suspeita de que Mulder havia sido encontrado em algum lugar, provavelmente... sem vida!

O seu desespero é tão cruel, que a comoção está se fazendo sentir por seu filho.

Dana anda pelo quarto. Seu caminhar de passos incertos, inseguros, é acompanhado pelos movimentos tremulantes do bebê em seu ventre.

Dana pega na mesa as chaves do carro, em gestos rápidos.

Se não fizer o que tem em mente, certamente não terá sossego, ficando dentro de casa, somente entregue ao seu desespero.

Ajeita o relógio no pulso que marca 10:05 de uma noite fria.

Deixa o apartamento. Fecha a porta. Dirige-se à rua.

Sabe que não deveria sair àquela hora.

Mas quem a impediria agora de tomar qualquer atitude arriscada para si e para seu filho?

Ninguém! Não tem mais ninguém mesmo! Está só! Esquecida. Abandonada. Perdida.

Ao pronunciar baixinho a frase, suas pernas bambeiam, fazendo-a desequilibrar-se.

Vai ficar só. Para sempre. Ela e seu filhinho.

Ela chega aos degraus da porta de entrada do prédio.

Vai descendo-os, vagarosamente.

Sente tonteiras. A rua gira ao seu redor.

O seu tormento manifesta-se em um mal-estar generalizado.

Ela acha por bem sentar-se num dos degraus. Segura a cabeça entre as mãos. Nem chora. Parece não haver mais lágrimas dentro de si. As energias parecem extinguir-se do seu ser.

Tudo escurece ante seus olhos.

Ela ouve o chamado.

O porteiro do prédio e uma vizinha a estão amparando.

Os dois ajudam-na a levantar-se.

Ela mal consegue segurar-se de pé, enquanto leva as mãos à cabeça.

A vizinha e o porteiro entreolham-se e percebem que Dana não está bem, realmente.

Scully joga em direção à mulher um olhar que denota censura. Raramente a encontra para conversar por minutos apenas, embora morando no mesmo prédio. Seu olhar permanece cheio de insensibilidade por instantes, porém logo depois a capa de frieza é despida e as lágrimas inundam seu triste e atormentado olhar.

A mulher mais nada comenta. Ajuda-a, somente.

- Obrigada, - diz ela ao porteiro - eu vou ajudar Dana a subir para o apartamento.

* * *

Dana permanece sentada. Pensativa.

A mulher senta-se ao seu lado.

Ao olhar duro e reprovador de Scully em sua direção, ela levanta a mão espalmada, defendendo-se.

Scully abaixa a cabeça. Fecha os olhos.

A mulher olha-a, contristada.

Dana continua em sua atitude meditativa.

"Quando dor, Mulder! Por que tinha que ser assim? Eu preciso de você... eu acho... eu acho que não vou sobreviver... não posso... mas preciso, Mulder...." - divagam seus pensamentos.

Ela desperta e volta à realidade.

A vizinha continua olhando-a, com ar preocupado.

A vizinha vai caminhando em direção à porta.

Dana levanta-se para ajudá-la a retirar-se.

Súbito, uma dor aguda a faz dobrar-se sobre si mesma.

Dana apoia os dois braços sobre o ventre, com um semblante de dor.

Dana nada retruca.

A mulher examina-a com o olhar, detalhadamente.

A pergunta feita de chôfre deixa Dana completamente sem jeito.

Permanece calada por alguns instantes.

Scully meneia a cabeça, confirmando.

Jessica a olha, condoida; entende a situação da outra.

Dana toca-lhe no braço.

Despede-se.

Dana a leva até a porta.

Espera que a vizinha saia para fechar a porta e encostar-se nela.

Fica ali parada, olhar perdido no espaço, as mãos cruzadas sobre o peito.

Não sabe porque, nos últimos dias tem sentido algo estranho, como se estivessem dilacerando-lhe a carne de seu peito, abrindo-o, arrancando-lhe as entranhas... terrível!

Sente-se afogueada e arfante.

Vai descendo aos poucos as mãos, acomodando-as sobre o ventre. Fecha os olhos.

Permanece nesta atitude de ansiedade por instantes.

Scully deixa-se cair junto à porta. Soluça alto. Deixa que seu peito alquebrado possa liberar seus angustiados apelos de amor.

Dana tenta segurar até os soluços e fica atenta, procurando ouvir mais distintamente aquele som de uma voz que lhe chega aos ouvidos.

Novamente a voz embargada e fraca ela parece ouvir.

Dana continua deitada no chão, rosto molhado de lágrimas apoiado sobre as duas mãos.

Os segundos de desespero haviam cessado. Agora somente deixa-se embalar por aquele chamado que ouve dentro do seu próprio coração.

"Só pode ser isso! No meu coração está gravada a voz do homem que eu amo e o ouço aqui... dentro de mim... - pensa - ...porque os caminhos do coração nos levam mais longe que o próprio espírito!

Dana abre os olhos, repentinamente.

Parece-lhe ser tão real aquelas palavras!

Ela, num ímpeto, toma uma decisão e levanta-se.

Toma as chaves do carro. Dá alguns passos para sair.

Pega o celular. Disca um número. Alguém atende do outro lado da linha.

* * *

Dana entra no apartamento escuro.

Ali era o mundo de Mulder. O seu mundo discreto, de paz, embora um tanto desarrumado.

Mas ali ele sentia-se bem. Ali ele podia descansar da lida do dia, deixar extravasar suas frustrações e angústias.

E quantas e quantas vezes haviam usufruido juntos daquele lugar onde podiam viver do seu amor que superava todas as coisas, os problemas e situações!

Dana aproxima-se do aquário.

Pega um dos potes, destampa-o e, lentamente, vai deixando cair das pontas dos dedos os pequeninos flocos, para que os habitantes daquela brilhante e transparente moradia possam alimentar-se.

* * *

Ele está deitado sobre algo que sente gelado sob a pele sensivel e machucada.

A superfície daquela espécie de catre, na qual se encontra, é terrivelmente incômoda, dura, insuportável sob seus ossos que pesam-lhe no corpo alquebrado.

Os ferimentos o maltratam tanto quanto a dor da saudade e da falta de sua amada.

Consegue, ainda, deixar vir à tona, mesmo em meio a tanto sofrimento, os seus pensamentos. Que até sobrepujam a dor e o terror.

Aquela drástica e tormentosa decisão de sair da vida da mulher amada o haviam feito tomar rumos que agora lhe faziam ver a profunda dor dilacerando-lhe as entranhas da carne e do coração. Seu modo introvertido de ser o havia feito guardar segredo daquele mal em sua carne.Não havia falado nada.

Fazê-la sofrer mais ?

Ela ainda poderia ser feliz de outra forma ou com alguém.

Preferira tomar aquela opção, num último momento; nem sabe bem o porquê, mas se em seu mundo já não teria esperanças de sobreviver, talvez algo pudesse ser feito por algum lugar, mesmo que estranho e sobrenatural fosse, por sua vida já a extinguir-se pela doença que minava em seu corpo.

Mas a decisão que havia tomado no momento da partida, surprendera-o em pavor, medo e sobretudo a saudade.

Deixaria a mulher amada para sempre! E depois? Se sobrevivesse à doença que o consumia, poderia viver sem a sua companhia? Resistiria estar distante, somente recordando-a, sem poder tocá-la, senti-la...? Resistiria?

Haveria uma distância infinitamente impossivel a separá-los para sempre. Para sempre!

E nesses lampejos de consciência, ele sente a ausência da amada.

Chama-a e clama por sua presença, desesperado, mas sem forças.

Só não consegue movimentar-se. Não sente seus membros. Está como um ser inerte. Praticamente já sem vida. Não tem forças. Nem sentidos.

Por muitas vezes sente seu cérebro trazer-lhe à mente imagens, as quais deseja que retornem e possam dar-lhe um pouco de alento no seu final de vida.

Ele é Mulder.

Jogado num local frio e terrificante. Estarrecedor. Inóspito.

Ele está ferido de morte. Longe de tudo e de todos.

Neste exato instante está podendo ter alguns segundos de lucidez.

Sua mente leva-o até um cenário bonito, azulado, límpido, de pequenas dimensões.

Borbulhas vão se sucedendo uma após a outra, saindo da cabeça do pequeno ser que ondula sob o movimento do líquido no qual se encontra submerso.

Um vai-e-vem incessante de algo que se move... constantemente... sem parar... peças brilhantes... coloridas... elas têm vida...! São... pequeninos seres vivos... peixinhos!

Eles estão em grande movimentação com a aparição na água límpida de onde estão, de pequeníssimos fragmentos esparsos, na superfície da água e que vão descendo... descendo... e os peixinhos os abocanham... é comida!

Os diminutos farelos continuam a cair... saindo das pontas de dedos pequenos, de unhas perfeitas... de mãos... femininas.

Um azul intenso e transparente vai, gradativamente aumentando, assemelhando-se a uma tela diante dele, como num cenário celestial.

Grossas e caudalosas águas transparentes vêm como ondas em sua direção; logo tornam-se mansas, quietas, e inundam todo o espaço azul.

Em seguida, tal qual o descer de uma cortina rosada cobrindo todo o cenário azul, esta cor desaparece, e, como uma mansa cascata, águas saem de sob as bordas da cortina com franjas... finas franjas douradas... que vão se distanciando aos poucos e ficando cada vez mais distantes... e Mulder pode ver:

as rosadas cortinas cerradas são pálpebras, as franjas douradas são cílios... dois olhos fechados, debaixo de cujos cílilos as lágrimas vão caindo mansa e ininterruptamente, descrevendo no seu voltear pelo cenário, o delinear de um rosto de pele clara, que mostra a boca de lábios polpudos e rubros e cujas linhas estão marcadas pela tristeza e a saudade.

Aquele rosto movimenta os olhos intensamente azuis e molhados; separa os lábios para chamar baixinho:

Em vão.

Suas forças já não existem

Só persistem em ficar firmes seus pensamentos, neste momento.

São momentos velozes; eles passam como raios por sua mente.

Ele ainda possui algo dentro de si com o qual pode demonstrar toda a saudade que o atormenta. As lágrimas.

E elas descem de seus olhos, no rosto maltratado e doente.

Está imóvel. Sofrido.

"Nunca mais, Scully, posso estar contigo! Nunca mais Scully, poderemos estar juntos... estou morrendo, Scully! Vem me ver! Quero me despedir...!" - suplica em sua mente.

* * *

Dana caminha agora em direção ao quarto.

Tudo escuro. Muito quieto. Sombrio mesmo.

Mas ainda emana em meio a esse cenário triste a voz mansa e os passos decididos de Mulder sobre o assoalho.

Ela ainda os pode sentir, como numa gostosa sensação de te-lo ali, junto de si.

Passa um dedo sobre a superfície de um móvel. O deslizar de seu dedo demonstra haver uma fina camada de poeira pousada ali.

O silêncio continua sendo somente quebrado pelo motorzinho do aquário na sala. Parece ainda existir alguma vida ali dentro que não seja somente a dos peixinhos.

Mas Dana não pode deixar-se abater. Tem que pensar algo que lhe traga alguma esperança. Não pode ser verdade a notícia que encontraram o corpo de Mulder.

"Não pode ser!!" - seus pensamentos gritam, num apelo de dor.

Pensando assim, foi que resolvera, antes de sair de casa, chamar uma pessoa que se encarregaria da limpeza total e completa daquele apartamento no dia seguinte.

O apartamento dele não ficaria abandonado. Ela não permitiria isso.

Mulder só tem a ela. Mais ninguém. Não tem mais o pai Bill, nem a mãe Teena, nem a irmã Samantha... ninguém... só a ela!

E ela não o deixará nunca.

Ao mesmo tempo em que sente terror pelas notícias chegadas da morte de Mulder, sente que pode, ainda, encher-se de esperanças de que não seja verdade.

E ela sabe, tem certeza de que neste mundo estranho tudo é possível.

E um longo e dorido suspiro sai de seu peito.

Embora sofrendo, ela pode até esperar por coisas melhores... notícias que lhe dêem alento... o seu amor com vida... quem sabe?

"Se no mundo não houvesse suspiros,

o mundo morreria afogado."

Alphonse Daudet