PALAVRAS QUE MACHUCAM

"A palavra fere, dói.

Dita no calor de mágoas ou ira,

Penetra como flecha envenenada."

Frei Beto

Capítulo 86

Ele não responde. Parece alheio às palavras dela.

Dana dá de ombros. Não liga. Por sua vez está ocupada nos afazeres. Pega um pilha de roupas do bebê e vai distribuindo-as nas gavetas do armário.

Toma algumas das roupinhas e encosta-as às narinas, aspirando-lhes o suave perfume.

Não ouve resposta.

Dana aproxima-se até onde pode vê-lo.

Ele está relaxadamente esticado numa poltrona; pernas colocadas o máximo à sua frente, mãos postas apoiadas acima da boca; pensativo; olhos abertos, fitando o espaço.

Dana coloca as mãos na cintura.

Ele apenas volta a vista para olha-la, sem qualquer outro movimento. Nada responde.

Ele assente, continuando a permanecer em sua mudez.

Dana suspira. Desiste. Ele não está propenso a conversas neste momento. Está nos seus momentos de solidão.

Ela dá a volta nos calcanhares e retorna à sua arrumação no quarto.

Olha o relógio digital que está marcando 22:39.

Encaminha-se para o berço. Puxa a cordinha do brinquedo pendurado numa das grades, ouvindo e achando gostosa a musiquinha infantil que sai daquele objeto de entretenimento da criança. Contempla por um minuto o seu filho, placidamente adormecido. Sente-se cansada. Os afazeres do dia haviam-na deixado fatigada.

Deita-se e aguarda Mulder vir à sua procura.

Repentinamente, um pensamento negativo atravessa-lhe a mente: sempre as recordações a tumultuarem-lhe a cabeça.

Conseguira obter, com as graças de Deus, a volta da alegria no seu coração com o retorno de Mulder à vida. Naqueles dias, tantos meses sofridos a deixara abatida, morta no espírito. Mas recebera a graça de ver seu amado voltar a viver.

E ela o levara, após sua recuperação, para o apartamento dele, naquele dia, após a saída do hospital.

Mulder ainda abatido, fraco, com o caminhar lento, tristonho pelas agruras que passara em seu sofrimento.

Dana sorri. Acha engraçada a lembrança de como ele se admirara com a limpeza do apartamento, achando-o "diferente".

"É muito Mulder! É a sua característica não se ligar a nada!" - pensa.

Mas... algo dessa lembrança lhe está martelando a mente, sem cessar.

Na sala, junto ao aquário, Mulder a fitara insistente e indagadoramente e, olhando sugestivamente para seu ventre, frio em palavras e semblante, dissera aquela frase que lhe havia causado intensa amargura:

"- Scully... desculpe... não quis ser frio ou injusto. É que não sei onde me encaixo nisso."

Como doera, como machucara dentro de seu coração essas palavras proferidas sem pensar!

Mas, volta a relembrar neste momento:

"Será que foram ditas, realmente, sem pensar? Ou devidamente estudadas para machucar-me? É... até pode ser que ele tivesse razão em pensar assim, pois havia sofrido muitas torturas, estava amargurado, angustiado ainda, cansado mesmo por ter voltado... da morte."

Mas será que justificaria trata-la desse modo tão pouco delicado, abordando um assunto tão sério, tão aguardado por ambos, tão íntimo?

Dana apoia-se num móvel. Uma ligeira tontura a deixa com a cabeça como se uma leveza a tornasse algo que a permitisse flutuar. O cansaço da tensão emocional causado por todo o desespero que sofrera antes do nascimento do seu filho, somado à fragilidade física pelo organismo combalido pelo parto.

"Ele me maltratou com palavras duras e insensíveis!" - recomeça a pensar, sofrida.

Levanta-se da cama. Fica diante do espelho a mirar-se, porém seus olhos nada vêem neste momento. Só um pensamento lhe ocorre:

Ali, diante daquele mesmo espelho, refletindo seu corpo ainda esguio, tempos atrás, deslizara ternamente a mão sobre o ventre em sentimentos ambíguos. Feliz por estar esperando o filho que sempre desejara e triste por saudade e angústia de não saber do paradeiro de Mulder naquela época.

Triste época. De agonia. Desespero. Desesperança. Tudo de ruim.

Mas ele retornara do fundo do abismo da morte. Está com ela, ali, dentro de seu apartamento há poucos metros de distância, mas...

"Mulder disse : " ... não sei onde me encaixo nisso..."

"O que pensara ele? Que eu o traira? Me considera tão vil e insensível assim? Mas por que? Teria eu lhe dado motivos para pensar isso de mim? Se sempre fui-lhe fiel na amizade, não o teria sido no amor?"

Os pensamentos de Dana vêm e vão, correndo pelas entranhas de sua mente.

Seu rosto contrai-se num choro, exatamente como naquela ocasião em que olhara-se, angustiada, no espelho.

Dana resolve deitar-se novamente. Vagarosamente e, com os olhos fixos no nada, ajeita os cobertores para seu corpo.

Ouve as pisadas fortes de Mulder. Fecha os olhos. Sente quase um desejo de não estar ali, compartilhando da mesma cama com ele.

Os movimentos do colchão demonstram que Mulder está se deitando.

Dana permanece quieta, em seu lugar. Sente, em dado momento, as pontas dos dedos longos e suaves de Mulder em seus cabelos.

Ela não responde. Finge dormir.

Mulder não a chama novamente.

Como tem o desejo de colar seu corpo ansioso ao quente dele! Mas não o consegue. O triste e perverso pensamento sobre a frase fria dele, que a maltratara tempos atrás a faz permanecer parada, inerte. Continua em sua mudez. Não quer dar o braço a torcer.

"Mas será que estou certa?" - pensa, preocupada.

É um tormento a deixa-la na dúvida em agir como seu coração exige. Não resiste.

Nada ouve como resposta.

O coração se lhe agita no peito.

"Ele não pode ter adormecido tão rapidamente!" - pensa.

Põe-se bem quieta, esperando ouvir o ressonar dele. Nada. Ela ergue o corpo em direção a Mulder.

Ele deitara-se virando as costas para o lado dela.

"Não quer assunto comigo hoje." - pensa e suspira.

Aquele gesto de Mulder a faz retornar o pensamento à atormentadora cena já a tanto passada, quando ele, observando seu ventre bastante desenvolvido pela gravidez, dissera: "... não sei onde me encaixo nisso..." as palavras que lhe machucam o coração.

Dana quer apagar da memória tal desagradável cena, porém não consegue. De olhos fechados, no escuro, fica exercitando a mente, forçando-a a trabalhar, a fim de esquecer o que tanto a maltrata.

O filhinho no berço. Rostinho angelical. Pele maravilhosamente macia e fina. Deitado, as perninhas ficam dobradas e abertas em ângulo... tão lindo! Todo criancinha fica assim.

"... não sei onde me encaixo nisso..."

Novamente a frase vem à tona.

Maggie, feliz com o neto, cheia de carinho... Bill, seu irmão... há tempos não o vê...!

"... não sei onde me encaixo nisso..."

Maldade. Como se lhe tivesse sido infiel.

"Entregar-me a outro homem para que, se todos esses anos a tudo renunciei, para segui-lo e ele não reconhece isso?

Amanhã tenho que falar ao zelador que providencie novas chaves para o escaninho do correio do apartamento. A antiga quebrou. Preciso ver a correspondência..." - força o pensamento a limpar sua mente de frases preocupantes.

"... não sei onde me encaixo..."

Dana senta-se na cama. Sente a mente cansada de tanto pensar e teimar, fazendo voltar à baila os pensamentos negativos.

"Vou levantar um pouco e distrair com alguma coisa." - propõe a si mesma.

Ergue o corpo cautelosamente, procurando não movimentar o colchão. Senta-se.

Sente a mão de Mulder sobre sua coxa, deslizando numa carícia.

- Pensei que estivesse dormindo... - ele fala, suavemente.

"...não sei onde me encaixo nisso..."

Novamente o pensamento maléfico vem à tona.

Dana procura não olhar Mulder.

Um longo e profundo suspiro sai de seu peito.

 

"Não deixes a tua língua

preceder o teu pensamento."
Chilon