ATITUDE INOCENTE

"A inocência tem na alma uma pérola,

e as pérolas não se dissolvem no lôdo."

Victor Hugo

Capítulo 89

Como um deslumbramento, descortina-se sob a vista de Dana a imensidão branca e gelada.

Agarrada a Mulder ela permanece, apertando-o contra o peito, cheia de ardor e de ternura.

Ele a havia salvo daquele fim horrendo entre seres extraterrestres. Vivera horas de desespero, loucamente à sua procura.

Mulder, o seu amado, a havia retirado, penosamente, daquele suplício gelado.

Dana agarra-o com mais força contra o peito. Acarinha-o, embala-o Como a uma criancinha. O seu menino.

Seus braços pequenos envolvem o corpo grande e forte dele. Quase nem consegue abarcá-lo. Mas faz o possível para que o seu corpo franzino possa aquecer o dele, naquele terror de gelo.

Mulder está inanimado. O esforço o fizera desmaiar e entregar-se inteiramente ao torpor da inconsciência.

Scully ainda o mantém preso, agarrado ao seu peito. Ela sabe que o organismo debilitado a poderia jogar naquele solo coberto pela neve e faze-la deixar-se desesperar e entregar-se à loucura do medo e do abandono em que se encontram.

Mas tem a convicção de que, como mulher forte e corajosa que sempre foi, há que pensar em algo, fazer algo a fim de sobreviverem e poderem deixar aquele lugar inóspito de terror, silêncio e solidão.

Mulder, ainda inconsciente, continua com o corpo cercado pelos braços franzinos de Scully.

Dana, a vista cansada, aturdida, quase a deixar-se dominar pela fraqueza, continua lutando pela vida, junto a Mulder.

Ergue os olhos para o espaço frio e imenso. Nada. Apenas o nada.

Lágrimas rolam de sua face combalida pelo sofrimento e o cansaço. As gotas do sofrimento caem na face inerte de Mulder, que não as pode sentir.

"Ergo os olhos para o alto. De onde me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez os céus e a terra."

A passagem bíblica com as palavras de Davi lhe toca a mente, fracamente. Parece até que seus ouvidos quase congelados captam um tênue ruído.

Agarra, com mais força, o corpo de Mulder, que só depende da quentura e apoio do seu para sobreviver. Unir o calor dos seus corpos é o essencial.

Scully, novamente, ergue o olhar aturdido e semicerrado pela dor e aflição.

Um ponto escuro no espaço enevoado. E parece mover-se.

Esperança de vida?

Com bem mais força aperta Mulder entre seus braços. Dobra mais as pernas, aconchegando-o a si. Apoia o corpo lânguido dele mais ainda sobre suas pernas enfraquecidas.

Mas têm que viver! Precisam!

"Se desistirmos, eles vencem!"

Lembra da frase que Mulder lhe ensinara.

O ponto escuro parece estar aumentando no espaço, agora.

"Isso significa aproxima-se...??" - Scully indaga em sua própria mente.

Ela tenta, com dificuldade, observar o que vê na imensidão. Percebe que o ruído está se tornando mais audível. Algo que fá-la lembrar o ruído das pás de...

" um helicóptero!!" - capta seu cérebro perturbado.

Ergue a mão e acena, com esforço para aquilo que julga ser sua ... salvação...? Ou perigo? Não sabe.

As forças se lhe esgotam.

O corpo de Mulder, muito pesado, sobre seus enfraquecidos membros, não se move. Continua inerte.

Dana dobra-se para encostar, suavemente, os lábios na face do amado, que não a pode sentir, neste momento. Ela percebe sob seus lábios enregelados, a pele macerada e fria de Mulder.

Ele não a pode ouvir. Não há resposta.

Só o ruído do que imagina ser um helicóptero continua cada vez mais e mais perto...

Seu corpo parece esvaziar-se com a languidez da morte.

Achega-se mais a Mulder. Agarra-o como se fosse ele a essência de seu próprio viver.

Um grande desânimo, porém, toma conta do seu ser. O sono, um terrível sono a embala agora. Seu corpo é como leve pluma pairando no ar...

* * *

Dana senta-se. Olha ao redor. Nota que estão ambos no chão, sobre o tapete aconchegante de sua casa.

Levanta-se, ajeitando a roupa.

Um choro alto é ouvido.

Dana ri com as palavras dele. Toma o telefone.

O bebê continua a chorar.

Dana tira-o do berço. Ele estremece os bracinhos com os punhos fechados. O rostinho, num semblante de choro, faz emocionar Dana.

Deitado no tapete, mãos cruzadas sob a nuca, olhar mortiço pela hora preguiçosa do dia.

Vários minutos se passam, enquanto Dana alimenta seu filho.

Ela o observa no seu colo, acaricia a cabecinha da criança, enquanto os olhinhos dele a fitam, com uma ternura sem par. Como se falassem: está é a minha mamãezinha, o meu tesouro!

Dana vê que o bebê a fita intensamente, reconhecendo-a, sentindo a doçura de seu toque e de seus sentimentos por ele, um pedacinho do seu ser.

A campainha da porta é tocada.

O bebê estremece com o susto.

Mulder a vê já de pé, porém ainda amamentando o seu filho. Ele levanta-se, dando um gemido. Dirige-se para a porta e abre- a

Um rapaz, na soleira da porta, o olha, com semblante sério.

Dana aproxima-se com o bebê nos braços.

Ele agradece com um largo sorriso.

Mulder está segurando a porta. Ao ver que o rapaz está começando a afastar-se, bate-a com estrépito, antes mesmo que ele desapareça de sua vista.

Mulder pára, observando Dana.

Dana nota que ele continua fitando-a, com seriedade no semblante, compenetrado.

Dana, intrigada pelo ar sério com que Mulder lhe dirige a palavra, examina a blusa, que tanto impacto havia causado a ele.

Mulder aproxima-se; encosta os dedos na parte da blusa que esconde o seu busto.

Dana ri, sentindo cócegas.

Mulder dá-lhe as costas, caminhando para outro compartimento da casa.

Ela o segue.

Dana leva as mãos ao rosto:

Mulder nada fala. Continua, porem, com o semblante fechado.

Dana afasta-se, balançando a cabeça, mas sorrindo com a idéia boba de Mulder.

Dirige-se à copa, a fim de providenciar o preparo do lanche.

Mulder, com o filhinho nos braços, acaricia-lhe a cabecinha de tenros e raros fios de cabelo.

Toma uma das mãozinhas e beija-a, ternamente.

Dana retorna. Vê que Mulder continua sério. Chega bem perto dele, suspende na ponta dos pés o corpo, para alcançar seu rosto e falar-lhe junto aos ouvidos.

Mulder a olha, sem sorrir.

Mulder move os lábios num leve sorriso.

Dana continua:

Mulder, agora, mostra no semblante o seu sorriso de menino ingênuo e no seu coração a luz da consciência o acusa, avisando de que havia feito tempestade num copo d'água com a atitude inocente de sua amada

Ela suspira profundamente. Não o olha. Está fitando apenas o seu bebê nos braços do pai.

Sorriem. Agora o olhar esquadrinhador dele penetra no olhar indagador dela.

Fitam-se por longos segundos, enquanto ambos encostam seus lábios nas mãozinhas irrequietas do seu filho.

E, aos poucos, pertinho cada vez mais, os lábios se encostam, se unem, se sentem, se acariciam, se degustam, num beijo que começa numa carícia e se transforma num tempestuoso ato de amor.

"O amor desculpa muitas coisas,

o amor próprio nenhuma."

P. de Kock